Aula Aberta
quinta-feira, outubro 06, 2005
  Materias de apoio - Fernando Pessoa (ortónimo)
O Modernismo

Entre a década de 80 do século XIX e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), surge o Modernismo, a traduzir a inquietude de uma época em crise e de grande agitação social. Diversas correntes estéticas procuram a novidade contra o estabelecido, numa clara reacção aos valores e aos sistemas políticos, sociais e filosóficos em vigor. Umas, de carácter novi-romântico, permitem movimentos tradicionalistas como o neogarrettismo, o nacionalismo e o integralismo; outras, procurando separar-se da burguesia e do seu materialismo, tentam a ruptura, apregoando a liberdade criadora, o cosmopolitismo, a originalidade, todas as formas de expressão capazes de traduzir uma nova realidade para a sua contemporaneidade. Estas novas experiências, denominadas de Vanguarda ou Vanguardismo, irão constituir o Modernismo, que abrange ou recobre todos os ismos: futurismo, cubismo, impressionismo, dadaísmo, expressionismo, interseccionismo, paulismo, sensacionismo.
Ferrando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada-Negreiros, entre outros, que fizeram no Saudosismo a sua iniciação, rapidamente transitam para o Modernismo com todas as influências das correntes estéticas e filosóficas europeias. Com eles, surge a revista Orpheu a traduzir as novas ideias. Este Primeiro Modernismo português vê a sua acção prosseguida e esclarecida pelo grupo da Presença (Segundo Modernismo), com José Régio, Casais Monteiro, Miguel Torga e outros.

Fernando Pessoa

Em Fernando Pessoa, coexistem duas vertentes: a tradicional e a modernista. Algumas das suas composições seguem na continuidade do lirismo português, com marcas do saudosismo; outras iniciam o processo de ruptura, que se concretiza nos heterónimos ou nas experiências modernistas que vão desde o simbolismo ao paulismo e interseccionismo, no Pessoa ortónimo.
Como afirma a crítica brasileira Neily Novaes Coelho, "Fernando Pessoa foi um ser-em-poesia", isto é, alguém que criou e viveu "quase todas as possibilidades de Ser e de Estar-no-mundo", através dos diversos poemas e culturas que exprimiu. O seu temperamento levou-o a criar dramas em actos e acção, com personalidades diferentes, que se revelam na heteronímia.
"Leve, breve, suave" é um dos poemas da continuidade onde a influência da leitura da lírica de Almeida Garrett é visível:

Leve, breve, suave,
Um canto de ave
Sobe no ar com que principia
O dia.
Escuto, e passou...
Parece que foi só porque escutei
Que parou

Nunca, nunca, em nada
Raie a madrugada,
Ou ‘splenda o dia, ou doire no declive,
Tive
Prazer a durar
Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir
Gozar.

Há, neste poema, uma delicadeza que se articula perfeitamente com a musicalidade e o ritmo do verso. A isto podemos juntar a suavidade do momento traduzido pela tripla adjectivação inicial anteposta ao "canto de ave". Esta forma de escrita, muito próxima do simbolismo, com inspiração garrettiana, permite criar um momento encantador e inebriante, para que contribui a própria melodia das rimas. E embora haja uma quebra do encantamento pela tomada de consciência do poeta que afirma: "Escuto, e passou” verifica-se a existência de uma emoção e de uma mágoa pela brevidade deste mágico momento.

Pessoa ortónimo

Quando se fala de Fernando Pessoa, interessa distinguir o ortónimo dos heterónimos que criou e para quem estabeleceu uma biografia própria. O seu universo heteronímico permitiu-lhe criar diferentes personalidades com outros nomes, como Alberto Caeiro, Ricardo Reis ou Álvaro de Campos; mas há uma personalidade poética activa que mantém o nome de Fernando Pessoa e, por isso, se designa de ortónimo. O Pessoa ortónimo escreveu a Mensagem, marcada pelo ocultismo, mas também outros poemas de características muito diversas. Compôs poemas da lírica mais simples e tradicional, muitas vezes marcada pelo desencanto e pela melancolia (como sucede no Cancioneiro); fez um aproveitamento cuidado do impressionismo e do simbolismo, abrindo caminho ao modernismo com o texto-programa do paulismo (em Impressões do Crepúsculo), onde põe em destaque o vago, a subtileza e a complexidade; desenvolveu outras experimentações modernistas com o interseccionismo e com o sensacionismo; revelou-se dialéctico, procurando a intelectualização das sensações e dos sentimentos. O Pessoa ortónimo revela um drama de personalidade que o leva à dispersão, em relação ao real e a si mesmo, ou lhe provoca fragmentações. Daí a capacidade de despersonalização (a de ser múltiplo sem deixar de ser um), que leva o ortónimo a tentar atingir a finalidade da Arte, ou, como afirma, a simplesmente aumentar a autoconsciência humana. O poeta parte da realidade, mas distancia-se, graças à interacção entre a razão e a sensibilidade, para elaborar mentalmente a obra de arte, Pessoa procura, através da fragmentação do eu, a totalidade que lhe permita conciliar o pensar e o sentir. A fragmentação está evidente, por exemplo, em Meu coração é um pórtico partido, ou nos poemas interseccionistas Hora Absurda e Chuva Oblíqua. Aí se verifica uma intersecção de realidades físicas e psíquicas, de realidades interiores e exteriores; uma intersecção dos sonhos e das paisagens reais, do espiritual e do material; uma intersecção de tempos e de espaços; uma intersecção da horizontalidade com a verticalidade. O interseccionismo entre o material e o sonho, a realidade e a idealidade são tentativas para encontrar a unidade entre a experiência sensível e a inteligência. Daí a intelectualização do sentimento para exprimir a arte, que fundamenta, o poeta fingidor.

Tensão sinceridade / fingimento, consciência / inconsciência, sentir / pensar

Em Fernando Pessoa, observa-se uma dialéctica da sinceridade / fingimento que se liga à da consciência / inconsciência e do sentir / pensar. Há assim uma concepção dinâmica da realidade poética que, pela união de contrários, permite criar linguagens e realidades em si diferentes da linguagem do artista e da sua vida, ao mesmo tempo que patrocina ao leitor objectos de identificação e valores que se universalizam e adquirem intemporalidade.
A crítica da sinceridade ou teoria do fingimento está bem patente neste movimento de oposições que leva Pessoa a afirmar que "fingir é conhecer-se". O poeta considera que a criação artística implica a concepção de novas relações significativas, graças à distanciação que faz do real, o que pode ser entendido como acto de fingimento ou de mentira. Artisticamente, considera que a mentira "é simplesmente a linguagem ideal da alma, pois, assim como nos servimos de palavras, que são sons articulados de uma maneira absurda, para em linguagem real traduzir os mais íntimos e subtis movimentos da emoção e do pensamento (que as palavras forçosamente não poderão nunca traduzir), assim nos servimos da mentira e da ficção para nos entendermos uns aos outros, o que, com a verdade, própria e intransmissível, se nunca poderia fazer." (in Fernando Pessoa, « Livro do Desassossego» de Bernardo Soares).
A poesia do ortónimo revela a despersonalização do poeta fingidor que fala e que se identifica com a própria criação poética, como impõe a modernidade. O poeta recorre à ironia para pôr tudo em causa, inclusive a própria sinceridade que, com o fingimento, possibilita a construção da arte. Fingir é inventar, elaborar mentalmente conceitos que exprimem as emoções ou o que quer comunicar É isso que se observa, por exemplo, em Autopsicografia («O poeta é um fingidor...»).
Neste poema, há uma dialéctica entre o eu do escritor Fernando Pessoa, inserido num espaço social e quotidiano, e o eu poético, personalidade fictícia e criadora, capaz de estabelecer uma relação mais livre entre o mundo concreto e o mundo possível. Por isso, não tem de se pedir a sinceridade de sentimentos, mas a criação de uma personalidade livre nos seus sentimentos e emoções. O poeta codifica o poema que o receptor descodifica à sua maneira, mas sem necessidade de encontrar a pessoa real do escritor. O poeta "finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente", enquanto os receptores "na dor lida sentem bem, / Não as duas que ele teve, / Mas só a que eles não têm." Isto significa que o acto poético apenas pode comunicar uma dor fingida, inventada, pois a dor real (sentida) continua no sujeito, que, por palavras e imagens, tenta uma representação; e os leitores tendem a considerar uma dor que não é a sua, mas que apreendem de acordo com a sua experiência de dor. Note-se que, neste poema, a dor surge em três níveis de compreensão: a dor real ("que deveras sente"), a dor fingida e a "dor lida". A produção poética parte da realidade da dor sentida, mas distancia-se criando uma dor fingida, graças à interacção entre a razão e a sensibilidade, que permite a elaboração mental da obra de arte. A elaboração estética acaba por se construir, pela conciliação da oposição razão / sentimento.
A dialéctica sinceridade/fingimento, consciência/inconsciência, sentir/pensar percebe-se também com nitidez ao recorrer ao interseccionismo como tentativa para encontrar a unidade entre a experiência sensível e a inteligência. O interseccionismo, que surge como uma evolução do paulismo, apresenta o entrecruzamento de planos que se cortam: intersecção de sensações ou percepções. Aí se verifica uma intersecção de realidades físicas e psíquicas, de realidades interiores e exteriores; uma intersecção dos sonhos e das paisagens reais, do espiritual e do material; uma intersecção de tempos e de espaços; uma intersecção da horizontalidade com a verticalidade. No interseccionismo encontramos o processo de realizar o sensacionismo, na medida em que a intersecção de sensações está em causa e por elas se faz a intersecção da sensação e do pensamento.
Chuva Oblíqua é um dos poemas onde é nítido o interseccionismo impressionista. Observem-se as intersecções entre a paisagem e o sonho do porto, entre as "árvores antigas" e a sua sombra esboçada nas águas, entre os navios e a projecção dos "troncos das árvores" com uma "horizontalidade vertical". Esta última expressão remete para esses dois planos: o horizontal e o vertical, que podem ser entendidos como sugestões da materialidade e da espiritualidade. Enquanto o plano horizontal nos encaminha para os campos semânticos da realidade física, da paisagem real, do espaço, o plano vertical orienta-nos para os campos semânticos das realidades psíquicas e do espiritual, do sonho, do tempo. Tanto na Parte I de Chuva Oblíqua como nas restantes, recria vivências que se interseccionam com outras que, por sua vez, dão origem a novas combinações de realidade/idealidade. E, neste jogo dialéctico, o sujeito poético revela-se duplo, fragmentado, na busca de sensações que lhe permitam antever a felicidade ansiada, mas inacessível.

O tempo e a desagregação: o regresso à infância
Do mundo perdido da infância, Pessoa sente a nostalgia. Ele que foi "criança contente de nada" e que em adolescente aspirou a tudo, experimenta agora a desagregação do tempo e de tudo. Um profundo desencanto e a angústia acompanham o sentido da brevidade da vida e da passagem dos dias. Ao mesmo tempo que gostava de ter a infância das crianças que brincam, sente a saudade de uma ternura que lhe passou ao lado. Busca múltiplas emoções e abraça sonhos impossíveis, mas acaba "sem alegria nem aspiração". Tenta manter vivo o "enigma" e a "visão" do que foi, restando-lhe a inquietação, a solidão e a ansiedade:

Quando os crianças brincam
E eu os oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma,
Começa a se alegrar.

E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.

Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinto
Isto no meu coração.

Pessoa, através do semi-heterónimo Bernardo Soares, no Livro do Desassossego, afirma que “o meu passado é tudo quanto não consegui ser”. Por isso, nada lhe apetece repetir nem sequer relembrar: O passado pesa "como a realidade de nada" e o futuro "como a possibilidade de tudo". O tempo é para ele um factor de desagregação na medida em tudo é breve, tudo é efémero. O tempo apaga tudo. "Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for será outra coisa, e o que vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma nova visão."

Bibliografia
Vasco Moreira e Hilário Pimenta, Português A e B (Acesso 2000), Porto Editora.
Recomenda-se:
A Lírica (Pessoa) 12.º Ano, Edições Sebenta;
Guerra, J.A. Vieira, J.A., Aula Viva 12.º Ano (português A, 1.º Vol.), Porto Editora.
Vasco Moreira e Hilário Pimenta, Dimensão Literária, 12.º Ano (Português A), Porto Editora.
 
Comentários:
Gostei muito da análise do poema ''Quando as crianças brincam'', mas acho que devia caracterizar melhor os recursos expressivos desse mesmo poema.
 
Gostei muito da análise do poema ''Quando as crianças brincam'', mas acho que devia caracterizar melhor os recursos expressivos desse mesmo poema.
 
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