Aula Aberta
terça-feira, novembro 08, 2005
  Ricardo Reis - um epicurista triste


Ouvi contar que outrora

Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na Cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.

À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário.
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.

Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo de xadrez.

Inda que nas mensagens do ermo vento
viessem os gritos,
E, ao reflectir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho.

Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.

Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado ao cálculo dum lance
Pra a efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predileto
Dos grandes indif'rentes.

Caiam cidades, sofram povos, cesse
A liberdade e a vida.
Os haveres tranquilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre.

Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com nós-próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.

Tudo o que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulso dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranquila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.

O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.

A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...
O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.

Ah! sob as sombras que sem qu'rer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.
Fernando Pessoa, Odes de Ricardo Reis

Um exercício interessante será ler este poema, considerando as linhas temáticas dominantes da poesia de Ricardo Reis, particularmente destacando as orientações didácticas e pseudo-moralistas do epicurismo e do estoicismo clássicos.
 
Comentários:
Ocorreu-me pensar a guerra sobre o ponto de vista de Ricardo Reis. O mesmo é dizer, pensar a guerra não a pensando, porque Ricardo Reis via, não pensava, e ver bastava-lhe para concluir. Começo pelo poema que me chamou a atenção. Depois do o ler, seguem-se umas palavras breves de análise, à maneira de desafio a quem queira só ver - só mesmo ver, e que recuse pensar mais do que isso.

Ricardo Reis lembra-me sempre Caiero, pela mesma margem de rio parado, que ousa parar quando deveria estar em movimento para ter significado perante o mundo. Como ás vezes o rio pára para ser rio, o homem pára para ser homem. Não pára para esperar que o olhemos, não pára para dar tempo á reflexão, para espantar ou meter medo, pára porque tem de parar para existir finalmente. A essência do movimento, que trsnaparece no reflexo de fora das coisas, é afinal a ilsuão de que todas as coisas devem lutar para se tornarem coisas, quando afinal, lutando deixam verdadeiramente de o ser. O homem, como o rio, parado existe. o homem, tal como o rio, quando se move e luta, deixa de ser homem, como o rio deixa de ser rio, para parecer ser rio, para parecer ser homem

Enciclopédia Universal - "Fernando Pessoa"
 
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