Materias de apoio - Fernando Pessoa (ortónimo)
O Modernismo Entre a década de 80 do século XIX e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), surge o Modernismo, a traduzir a inquietude de uma época em crise e de grande agitação social. Diversas correntes estéticas procuram a novidade contra o estabelecido, numa clara reacção aos valores e aos sistemas políticos, sociais e filosóficos em vigor. Umas, de carácter novi-romântico, permitem movimentos tradicionalistas como o neogarrettismo, o nacionalismo e o integralismo; outras, procurando separar-se da burguesia e do seu materialismo, tentam a ruptura, apregoando a liberdade criadora, o cosmopolitismo, a originalidade, todas as formas de expressão capazes de traduzir uma nova realidade para a sua contemporaneidade. Estas novas experiências, denominadas de Vanguarda ou Vanguardismo, irão constituir o Modernismo, que abrange ou recobre todos os ismos: futurismo, cubismo, impressionismo, dadaísmo, expressionismo, interseccionismo, paulismo, sensacionismo.
Ferrando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada-Negreiros, entre outros, que fizeram no Saudosismo a sua iniciação, rapidamente transitam para o Modernismo com todas as influências das correntes estéticas e filosóficas europeias. Com eles, surge a revista Orpheu a traduzir as novas ideias. Este Primeiro Modernismo português vê a sua acção prosseguida e esclarecida pelo grupo da Presença (Segundo Modernismo), com José Régio, Casais Monteiro, Miguel Torga e outros.
Fernando Pessoa Em Fernando Pessoa, coexistem duas vertentes: a tradicional e a modernista. Algumas das suas composições seguem na continuidade do lirismo português, com marcas do saudosismo; outras iniciam o processo de ruptura, que se concretiza nos heterónimos ou nas experiências modernistas que vão desde o simbolismo ao paulismo e interseccionismo, no Pessoa ortónimo.
Como afirma a crítica brasileira Neily Novaes Coelho, "Fernando Pessoa foi um ser-em-poesia", isto é, alguém que criou e viveu "quase todas as possibilidades de Ser e de Estar-no-mundo", através dos diversos poemas e culturas que exprimiu. O seu temperamento levou-o a criar dramas em actos e acção, com personalidades diferentes, que se revelam na heteronímia.
"Leve, breve, suave" é um dos poemas da continuidade onde a influência da leitura da lírica de Almeida Garrett é visível:
Leve, breve, suave,
Um canto de ave
Sobe no ar com que principia
O dia.
Escuto, e passou...
Parece que foi só porque escutei
Que parou
Nunca, nunca, em nada
Raie a madrugada,
Ou ‘splenda o dia, ou doire no declive,
Tive
Prazer a durar
Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir
Gozar.
Há, neste poema, uma delicadeza que se articula perfeitamente com a musicalidade e o ritmo do verso. A isto podemos juntar a suavidade do momento traduzido pela tripla adjectivação inicial anteposta ao "canto de ave". Esta forma de escrita, muito próxima do simbolismo, com inspiração garrettiana, permite criar um momento encantador e inebriante, para que contribui a própria melodia das rimas. E embora haja uma quebra do encantamento pela tomada de consciência do poeta que afirma: "Escuto, e passou” verifica-se a existência de uma emoção e de uma mágoa pela brevidade deste mágico momento.
Pessoa ortónimo Quando se fala de Fernando Pessoa, interessa distinguir o ortónimo dos heterónimos que criou e para quem estabeleceu uma biografia própria. O seu universo heteronímico permitiu-lhe criar diferentes personalidades com outros nomes, como Alberto Caeiro, Ricardo Reis ou Álvaro de Campos; mas há uma personalidade poética activa que mantém o nome de Fernando Pessoa e, por isso, se designa de ortónimo. O Pessoa ortónimo escreveu a Mensagem, marcada pelo ocultismo, mas também outros poemas de características muito diversas. Compôs poemas da lírica mais simples e tradicional, muitas vezes marcada pelo desencanto e pela melancolia (como sucede no Cancioneiro); fez um aproveitamento cuidado do impressionismo e do simbolismo, abrindo caminho ao modernismo com o texto-programa do paulismo (em Impressões do Crepúsculo), onde põe em destaque o vago, a subtileza e a complexidade; desenvolveu outras experimentações modernistas com o interseccionismo e com o sensacionismo; revelou-se dialéctico, procurando a intelectualização das sensações e dos sentimentos. O Pessoa ortónimo revela um drama de personalidade que o leva à dispersão, em relação ao real e a si mesmo, ou lhe provoca fragmentações. Daí a capacidade de despersonalização (a de ser múltiplo sem deixar de ser um), que leva o ortónimo a tentar atingir a finalidade da Arte, ou, como afirma, a simplesmente aumentar a autoconsciência humana. O poeta parte da realidade, mas distancia-se, graças à interacção entre a razão e a sensibilidade, para elaborar mentalmente a obra de arte, Pessoa procura, através da fragmentação do eu, a totalidade que lhe permita conciliar o pensar e o sentir. A fragmentação está evidente, por exemplo, em Meu coração é um pórtico partido, ou nos poemas interseccionistas Hora Absurda e Chuva Oblíqua. Aí se verifica uma intersecção de realidades físicas e psíquicas, de realidades interiores e exteriores; uma intersecção dos sonhos e das paisagens reais, do espiritual e do material; uma intersecção de tempos e de espaços; uma intersecção da horizontalidade com a verticalidade. O interseccionismo entre o material e o sonho, a realidade e a idealidade são tentativas para encontrar a unidade entre a experiência sensível e a inteligência. Daí a intelectualização do sentimento para exprimir a arte, que fundamenta, o poeta fingidor.
Tensão sinceridade / fingimento, consciência / inconsciência, sentir / pensar
Em Fernando Pessoa, observa-se uma dialéctica da sinceridade / fingimento que se liga à da consciência / inconsciência e do sentir / pensar. Há assim uma concepção dinâmica da realidade poética que, pela união de contrários, permite criar linguagens e realidades em si diferentes da linguagem do artista e da sua vida, ao mesmo tempo que patrocina ao leitor objectos de identificação e valores que se universalizam e adquirem intemporalidade.
A crítica da sinceridade ou teoria do fingimento está bem patente neste movimento de oposições que leva Pessoa a afirmar que "fingir é conhecer-se". O poeta considera que a criação artística implica a concepção de novas relações significativas, graças à distanciação que faz do real, o que pode ser entendido como acto de fingimento ou de mentira. Artisticamente, considera que a mentira "é simplesmente a linguagem ideal da alma, pois, assim como nos servimos de palavras, que são sons articulados de uma maneira absurda, para em linguagem real traduzir os mais íntimos e subtis movimentos da emoção e do pensamento (que as palavras forçosamente não poderão nunca traduzir), assim nos servimos da mentira e da ficção para nos entendermos uns aos outros, o que, com a verdade, própria e intransmissível, se nunca poderia fazer." (in Fernando Pessoa, « Livro do Desassossego» de Bernardo Soares).
A poesia do ortónimo revela a despersonalização do poeta fingidor que fala e que se identifica com a própria criação poética, como impõe a modernidade. O poeta recorre à ironia para pôr tudo em causa, inclusive a própria sinceridade que, com o fingimento, possibilita a construção da arte. Fingir é inventar, elaborar mentalmente conceitos que exprimem as emoções ou o que quer comunicar É isso que se observa, por exemplo, em Autopsicografia («O poeta é um fingidor...»).
Neste poema, há uma dialéctica entre o eu do escritor Fernando Pessoa, inserido num espaço social e quotidiano, e o eu poético, personalidade fictícia e criadora, capaz de estabelecer uma relação mais livre entre o mundo concreto e o mundo possível. Por isso, não tem de se pedir a sinceridade de sentimentos, mas a criação de uma personalidade livre nos seus sentimentos e emoções. O poeta codifica o poema que o receptor descodifica à sua maneira, mas sem necessidade de encontrar a pessoa real do escritor. O poeta "finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente", enquanto os receptores "na dor lida sentem bem, / Não as duas que ele teve, / Mas só a que eles não têm." Isto significa que o acto poético apenas pode comunicar uma dor fingida, inventada, pois a dor real (sentida) continua no sujeito, que, por palavras e imagens, tenta uma representação; e os leitores tendem a considerar uma dor que não é a sua, mas que apreendem de acordo com a sua experiência de dor. Note-se que, neste poema, a dor surge em três níveis de compreensão: a dor real ("que deveras sente"), a dor fingida e a "dor lida". A produção poética parte da realidade da dor sentida, mas distancia-se criando uma dor fingida, graças à interacção entre a razão e a sensibilidade, que permite a elaboração mental da obra de arte. A elaboração estética acaba por se construir, pela conciliação da oposição razão / sentimento.
A dialéctica sinceridade/fingimento, consciência/inconsciência, sentir/pensar percebe-se também com nitidez ao recorrer ao interseccionismo como tentativa para encontrar a unidade entre a experiência sensível e a inteligência. O interseccionismo, que surge como uma evolução do paulismo, apresenta o entrecruzamento de planos que se cortam: intersecção de sensações ou percepções. Aí se verifica uma intersecção de realidades físicas e psíquicas, de realidades interiores e exteriores; uma intersecção dos sonhos e das paisagens reais, do espiritual e do material; uma intersecção de tempos e de espaços; uma intersecção da horizontalidade com a verticalidade. No interseccionismo encontramos o processo de realizar o sensacionismo, na medida em que a intersecção de sensações está em causa e por elas se faz a intersecção da sensação e do pensamento.
Chuva Oblíqua é um dos poemas onde é nítido o interseccionismo impressionista. Observem-se as intersecções entre a paisagem e o sonho do porto, entre as "árvores antigas" e a sua sombra esboçada nas águas, entre os navios e a projecção dos "troncos das árvores" com uma "horizontalidade vertical". Esta última expressão remete para esses dois planos: o horizontal e o vertical, que podem ser entendidos como sugestões da materialidade e da espiritualidade. Enquanto o plano horizontal nos encaminha para os campos semânticos da realidade física, da paisagem real, do espaço, o plano vertical orienta-nos para os campos semânticos das realidades psíquicas e do espiritual, do sonho, do tempo. Tanto na Parte I de Chuva Oblíqua como nas restantes, recria vivências que se interseccionam com outras que, por sua vez, dão origem a novas combinações de realidade/idealidade. E, neste jogo dialéctico, o sujeito poético revela-se duplo, fragmentado, na busca de sensações que lhe permitam antever a felicidade ansiada, mas inacessível.
O tempo e a desagregação: o regresso à infância
Do mundo perdido da infância, Pessoa sente a nostalgia. Ele que foi "criança contente de nada" e que em adolescente aspirou a tudo, experimenta agora a desagregação do tempo e de tudo. Um profundo desencanto e a angústia acompanham o sentido da brevidade da vida e da passagem dos dias. Ao mesmo tempo que gostava de ter a infância das crianças que brincam, sente a saudade de uma ternura que lhe passou ao lado. Busca múltiplas emoções e abraça sonhos impossíveis, mas acaba "sem alegria nem aspiração". Tenta manter vivo o "enigma" e a "visão" do que foi, restando-lhe a inquietação, a solidão e a ansiedade:
Quando os crianças brincam
E eu os oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma,
Começa a se alegrar.
E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.
Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinto
Isto no meu coração.
Pessoa, através do semi-heterónimo Bernardo Soares, no Livro do Desassossego, afirma que “o meu passado é tudo quanto não consegui ser”. Por isso, nada lhe apetece repetir nem sequer relembrar: O passado pesa "como a realidade de nada" e o futuro "como a possibilidade de tudo". O tempo é para ele um factor de desagregação na medida em tudo é breve, tudo é efémero. O tempo apaga tudo. "Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for será outra coisa, e o que vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma nova visão."
Bibliografia
Vasco Moreira e Hilário Pimenta,
Português A e B (Acesso 2000), Porto Editora.
Recomenda-se:
A Lírica (Pessoa) 12.º Ano, Edições Sebenta;
Guerra, J.A. Vieira, J.A.,
Aula Viva 12.º Ano (português A, 1.º Vol.), Porto Editora.
Vasco Moreira e Hilário Pimenta,
Dimensão Literária, 12.º Ano (Português A), Porto Editora.